Desde que a Covid-19 Tomou posse das nossaS vidas, tem havido uma explosão de artigos de saúde mental Na Internet, defendendo o uso público de conhecimento e recursos usados em psicoterapia. como estão os clientes de terapia a viver tudo isto e o que pode significar esta partilha de recursos no momento que vivemos?
Há duas semanas atrás, como várias outras pessoas, a minha vida mudou. Passei de um psicólogo que vê pessoas predominantemente num cenário face-a-face e ocasionalmente através do Skype (geralmente quando os meus clientes viajam ou mudam de país) para alguém que trabalha única e exclusivamente online. Trabalho em Lisboa, com clientes de outras nacionalidades (‘expats’) e clientes nacionais urbanos. Estou habituado a trabalhar com pessoas que viajam.
Trabalhar predominantemente a partir de casa implica várias mudanças, por exemplo, negociar regras de limpeza e desinfeção com as pessoas com que vivo, delimitar barreiras e negociar espaços comuns. Aos quarenta anos navego esta crise tentando distribuir a minha atenção entre vários focos, nomeadamente a preocupação por pais idosos e o seu bem-estar. Enquanto tento fazer sentido da crise que vivemos, comecei a perguntar-me que consequências podem advir da mesma para clientes de terapia passados e presentes. Ao fazê-lo, deparei-me também com o meme acima, partilhado nas redes sociais por um amigo próximo. Surpreendeu-me o quanto este meme fala sobre o que se passa nesta altura, na relação entre clientes de terapia e a Covid-19.
Pacientes versus clientes de terapia: ser ou não ser, eis a questão
Assumir que um cliente de terapia é fundamentalmente alguém que sofre de um tipo de psicopatologia parece-me um grande atalho. Na linguagem dos terapeutas familiares, as pessoas escolhidas pelas famílias como estando na base de um determinado problema, são chamadas de ‘paciente identificado’. Os terapeutas familiares escolhem chamar a estas famílias de paciente ‘identificado/a’ porque na verdade, como diz o ditado Anglo-Saxónico, são precisos dois para dançar o tango (“it takes two to tango”). Nas famílias, frequentemente, são precisas mais do que duas pessoas.
O paciente identificado(/a), com frequência, serve como um mensageiro do que se está a passar no grupo familiar. Regra geral, são pessoas que não conseguem pura e simplesmente aceitar a negação do(s) problema(s) existentes no meio familiar. Têm dificuldade em obedecer a um comando em particular: “Pára de ver problemas onde estes não existem”. Quando o/a paciente identificado/a (selecionado a assumir essa posição em família, por si mesmo ou pelos outros em volta) vem fazer terapia individual, existem sempre mudanças significativas não só ao nível do comportamento individual, mas também mudanças na relação entre o cliente e a sua família e grupo de pares. Em suma: chamar ao cliente individual alguém com um problema de saúde mental não passa de uma simplificação. Transportamos os sintomas (os ‘sinais’ do nosso sofrimento) tanto quanto transportamos e somos transportados pelas relações familiares e sociais em que existimos. Acompanhar o que está a acontecer a clientes individuais em tempos de Covid-19, confirma, mais uma vez – como um dia disse o poeta John Donne – que ‘nenhum homem é uma ilha’. Diria, nenhuma pessoa é uma ilha. Tudo isto porque alguns dos meus clientes de psicoterapia, acredite ou não, estão a viver esta crise de uma forma surpreendentemente positiva.
Espere um segundo…menos ansiedade?
Após duas semanas de isolamento, estou surpreendido com a forma como vários clientes com uma história crónica de ansiedade parecem estar a viver esta crise, de uma forma muito menos ansiosa que o expectável. Em conversas informais com colegas psicoterapeutas, outros colegas parecem também estar a verificar isto entre os seus clientes. Fora do meio psicoterapêutico, alguns amigos contam histórias sobre pessoas da sua rede social com trajetórias crónicas de depressão e ansiedade a agirem e sentirem-se mais fortes que nunca. O que pode significar esta mudança?
Pensando a partir das regras de anonimato e confidencialidade que caracterizam a nossa profissão, começo por fornecer um esboço do que parece estar a acontecer com vários dos meus clientes. Rodeados por um mundo a transbordar de ansiedade, alguns dos meus clientes sentem que a crise proporcionou um nivelamento, uma forma de equiparação entre a sua experiência e a experiência do mundo externo. Seja, numa sociedade em que a identidade pessoal começa a caminhar muito perto da forma como a pessoa está a manejar a ansiedade desta crise, vários clientes deixaram de se sentir pessoas ‘identificadas’ pela ansiedade. Para outros, como no meme sobre agorafobia incluído acima, aquilo que causa a ansiedade da pessoa (por exemplo, no caso do agorafóbico, sair para espaços abertos, na proximidade de pessoas fora do grupo familiar) deixou agora de oferecer um problema, à medida que nos isolamos. Clientes que a diferentes níveis já estavam num processo de isolamento, afirmam que já se sentiam em preparação para a crise que estamos a passar. Uma parte substancial destas ansiedades parece ter sido removida ou minimizada no presente. O que acontecerá quando voltarmos a deixar as nossas casas permanece uma incógnita.
Alguns casais parecem estar a desistir das lutas e conflitos que marcam a sua relação, à medida que os motivos das mesmas são suspensos em impossibilidades momentâneas (exemplo: “vamos, ou não vamos, ter uma criança em breve”). Outros clientes parecem estar a seguir um caminho mais espiritual e a olhar para esta crise como uma alavanca social permitindo a redefinição de um novo sentido de sociedade e talvez até de um decréscimo nos modelos corporativos de competitividade e produtividade que têm vindo a definir as diferentes formas de trabalho. Na verdade, em reflexão, talvez o ato de fazer psicoterapia tenha vindo a preparar alguns destes clientes para o ponto a que chegámos. Clientes de psicoterapia já estavam à procura do tipo de técnicas e instrumentos que abundam atualmente na internet, desde a ‘gestão’ da ansiedade até o aprender a estar em tranquilidade na própria companhia.
Para onde vamos a partir daqui, como terapeutas e clientes de terapia?
O consultório de um psicólogo, físico ou online, é uma janela para a humanidade, mas não um espelho direto. Numa escala maior, estamos também a assistir a um aumento potencial de violência doméstica para pessoas isoladas em casa com os seus abusadores, lado a lado com os efeitos graduais da desigualdade social, mais ainda em populações que já estavam numa posição de vulnerabilidade. Estes são apenas dois exemplos grupos de pessoas que raramente chegam ao consultório de psicologia.
Por outro lado, em Portugal, mais do que duas semanas em confinamento, estamos a aprender à medida que caminhamos por esta crise. Onde vamos estar em um mês ou dois de confinamento, certamente será diferente do ponto atual. A tudo isto soma-se uma recessão global, atualmente em marcha.
Face à dimensão de todas estas mudanças, a prática da psicoterapia pode vir a diminuir o foco em mudanças comportamentais (isto é, comportamentos que eu quero ver mais, e comportamentos que eu quero ver menos, em mim próprio e nos outros). Alternativamente, podemos voltar à terapia como um processo de auto-descoberta e talvez mais importante, podemos evoluir para formas psicoterapêuticas mais focadas na identificação de valores humanos básicos e sua prática. Assim sendo, algumas linhas de exploração podem vir a tornar-se mais importantes no consultório de psicoterapia, mas também para além do consultório. Por exemplo: quais são os meus valores humanos básicos e como quero agir estes valores com os diferentes círculos em que me movimento (família, amigos, colegas de trabalho, estranhos)? Que valores quero que os meus filhos ajam como futuros cidadãos e como podemos chegar lá? Que valores quero ver acontecer na sociedade como um todo e como posso tornar-me parte da solução? Em suma: como quero viver, com consciência e significado, num mundo partilhado? Se assim for, há que olhar em frente para esta mudança, em clientes passados, presentes e futuros. Pois como diria John Donne, ninguém é uma ilha e em terapia tal como em muitas outras práticas, serão sempre precisos pelo menos dois para dançar o tango.