O mundo Ocidental onde muitos de nós vivem apresenta-se com frequência como um lugar onde várias escolhas são possíveis. Talvez mais ainda para o que viemos a designar como a geração Milénio, existe um determinado ideal de vida relacionado com a ideia de movimento imparável. Viver é estar em movimento ou estar preparado para estar em movimento, potencialmente mudando de casa, país, relação ou emprego à medida que novas escolhas surgem no horizonte. A pandemia e o momento atual parecem apresentar-se como a antítese de tudo isso. A muitos de nós, geração Milénio ou não, está atualmente a ser pedido aceitar uma vida de paragem gradual, abrandamento ou ‘desacelaração’. Neste cenário, o que acontece se resistirmos a este convite a abrandar? E que relação pode existir entre abrandamento, escolha e saúde mental em tempos de COVID-19?
Compreender e Excluir
Trabalho como psicoterapeuta em Lisboa com uma população predominantemente urbana, constituída por clientes nacionais e internacionais, a maioria nos seus 30/40 anos. Estando na sexta semana de confinamento, a fazer consultas em modo online, nada é mais claro neste ponto que a diversidade de reações psicológicas face à COVID-19. Esta diversidade nem sempre é representada em artigos de cariz psicológico encontrados na internet, onde o foco privilegiado num determinado grupo ou situação implica a exclusão de outros grupos e situações.
Artigos sobre casais em stress divididos entre crianças e teletrabalho excluem as dificuldades de casais sem filhos em confinamento, ou as lutas das famílias em que os pais, trabalhadores essenciais, continuam no ativo. Artigos focados em casais e famílias tendem a excluir as experiências de indivíduos em isolamento, vivendo os seus espaços, de momento, sem outros significativos. Artigos focados em cidadãos nacionais tendem a excluir a experiência de cidadãos que vivem o confinamento fora do seu país de origem. A maioria dos artigos tende a deixar de lado as dificuldades especificas de indivíduos e famílias vivendo atualmente em situações de pobreza, exclusão social e desemprego, várias destas situações já provocadas pela COVID-9 e suas repercussões económicas.
Contra este quadro de exclusões sucessivas, é possível argumentar que não existe um único tipo de aconselhamento psicológico que seja capaz de se dirigir a todas as diferentes experiências de COVID-19, simultaneamente. Isso não significa que temas comuns não persistam na diversidade. Para além das situações de exclusão social por dificuldades económicas graves (em que a saúde mental é mais um entre vários níveis de dificuldade) existe pelo menos um tema atravessando as várias experiências do meu grupo de clientes. Refiro-me à relação com a escolha, seja, à forma como cada um, em tempos de confinamento, reflete sobre as escolhas feitas na sua biografia pessoal.
Aceleração e Escolha
Tal como vários clientes, confinado em casa e em trabalho online, estou atualmente a aprender a diferença entre aceitar o convite ao abrandamento que o mundo nos parece estar a lançar neste momento versus o custo de resistir este convite em particular. Talvez a resistência a abrandar neste ponto das nossas histórias conjuntas diga algo sobre alguns de nós em termos individuais, mas também, em traços maiores, algo sobre o mundo em que estávamos a viver, pré COVID-19.
Hylland Eriksen é um antropólogo que escreve e pensa sobre a modernidade, nomeadamente no que toca à relação entre capitalismo e crise ecológica. Para Eriksen, a ideia de aceleração infinda é um dos aspetos mais evidentes das sociedades modernas. Do crescendo exponencial nos usos de energia, às rápidas mudanças dos centros urbanos, à mobilidade quase ilimitada de pessoas e bens, a nossa vida pré-COVID-19 foi vivida num fluxo contínuo de movimento. Neste mundo em movimento constante, a relação pessoal com a escolha tem vindo a revestir-se de uma ansiedade gradualmente maior. ‘Onde viver’, ‘o que fazer como emprego’, ‘com quem estar numa relação’, face à promessa de uma gama de escolhas cada vez mais diversa, são tanto objetos de angústia pessoal como coletiva. A arena das redes sociais, permitindo o observar e testemunhar destas escolhas por várias audiências, introduz um outro nível de expectativa e julgamento sobre escolhas feitas.
Neste contexto, ser percebido como alguém que não faz as escolhas certas liga-se à ideia de ser alguém que não consegue acompanhar o ritmo de um mundo em aceleração infinda, alguém que não se transforma o suficiente ao longo do tempo. Na lógica do movimento constante, por exemplo, permanecer demasiado tempo em um determinado emprego passa a ser visto como prova de estagnação, i.e., como alguém não fazendo um bom uso das escolhas que convidam à auto-transformação e melhoramento pessoal contínuo. A dificuldade causada pela atual situação de pandemia, convidando ao abrandamento, liga-se a uma angústia coletiva que já existia pré-COVID-19. Esta é a ideia, partilhada por muitos de nós em segredo, de que já não estávamos a conseguir acompanhar um mundo em aceleração constante com exigências de transformação e melhoramento pessoal infindos. Resistir ou aceitar o abrandamento da fase atual constrói-se assim sobre uma experiência anterior de relação com um mundo acelerado, enraizada na história do sujeito e nas suas contingências pessoais, mas sem excluir as circunstâncias coletivas. Assim também é possível perceber a (justa) indignação de pais em teletrabalho, solicitados a fornecer apoio escolar aos filhos face a volumes avultados de exercícios, disparados em catadupas online, por professores à distância. Na dinâmica aceleração/abrandamento, trata-se de um exemplo de como uma instituição em particular, a Escola neste caso, resiste a tarefa de aprendizagem essencial desta fase: abrandar e contemplar.
Monólogos internos em tempos de COVID-19
Em casa, para aqueles de nós no privilégio do confinamento e trabalho online, em partilha ou em isolamento, com ou sem crianças à volta, a mente percorre os caminhos de relação com escolhas feitas. Elementos de um casal refletem sobre a sequência de eventos que levou à escolha da outra pessoa. As opções profissionais são pensadas a revisitadas. Indivíduos estrangeiros vivendo em solo nacional repensam a história de relação com o país atual e as escolhas que a conduziram. Cidadãos nacionais revisitam fantasias de migração deixadas algures no passado. Existe ansiedade sobre quanto tempo levará para voltar à forma pré COVID-19, frequentemente chamada de ‘normal’. Existe ansiedade sobre a forma como o tempo presente está a ser vivido e usado, particularmente se alguém está a viver esta fase como tempo ‘parado’ ou tempo perdido, antecipando o futuro como um ponto onde o tempo presente terá que ser compensado. Por vezes, o tempo de reabertura pós-confinamento é idealizado como um tempo onde todas as escolhas há muito adiadas, bem antes da COVID-19, vão necessitar de ser feitas de uma vez por todas.
Para famílias com crianças, a ansiedade da escolha chega a alguns destinos e dilemas específicos. Deixar as crianças voltar à escola e arriscar a contaminação de toda a família ou mantê-las em casa, continuando os desafios de multi-gestão? Permitir visitas aos avós com as regras de distanciamento social ou proteger ambos os grupos, evitando qualquer forma de contacto mútuo em proximidade? Mostrar segurança face às ansiedades das crianças, fingindo saber o ‘caminho em frente’ ou reconhecer, como adultos, que nos faltam várias respostas face à Covid-19?
Por vezes a mente viaja entre diversas escolhas, entre presente e passado, recriando internamente a aceleração do mundo pré-COVID-19, o mesmo mundo que tantas vezes designamos por ‘normal’. Outras vezes, abrandar torna-se um pouco mais possível. Nessas alturas somos mais capazes de aceitar que os nossos dias atuais são o que podem ser, sendo nós o que é possível ser neste ponto, tudo isto enquanto nos focamos nas sequências das nossas rotinas. A aceitação cresce e com ela, um sentimento de alívio.
Viver em luta
Nos dias em que lutamos mais contra o convite ao abrandamento, é como se quiséssemos acreditar que o nosso poder como indivíduos, pensados como separados de um mundo envolvente, pode recriar a aceleração infinda do mundo pré-COVID-19. Nesses dias, abraçamos a negação: o problema (e a solução) não está fora mas em mim, mas sim em mim, a pessoa que mais uma vez não está a fazer as escolhas certas, também no que toca à situação atual. Revemos escolhas, desenhamos planos de ação, imaginamos formas de remar contra um mundo incerto e instável, imaginamos uma corrida, eu de um lado, o mundo do outro. Tal como lembra Barry Schwartz, um psicólogo a pensar sobre a relação com a escolha em contextos ocidentais, entramos na angústia da escolha. Contemplamos demasiadas escolhas de uma vez e sofremos com os compromissos específicos de cada uma, com as perdas, pequenas ou grandes, que cada escolha implica. Antecipamos cenários de arrependimento futuro ligada a cada escolha. Visualizamos o potencial das escolhas não feitas. Paralisamos face a estes cenários. Repetimos o processo e começamos de novo.
Schwartz sugere que de forma a diminuir a angústia da escolha, poderíamos tentar re-aprender a escolher: poderíamos definir áreas das nossas vidas onde nos permitimos uma maior diversidade de escolhas versus áreas da nossa vida em que intencionalmente, nos conduzimos a um menor leque de possibilidades de escolha. À medida que a psicoterapia se repensa em tempos de Covid-19, parte do nosso desafio (presente e futuro) pode, cada vez mais, consistir em ajudar os nossos clientes a redefinir a relação com a escolha, no caminho apontado por Schwartz. Dito de outra forma: em um mundo de restrições e movimentos limitados nos espaços público e privado somado ao estreitamento de opções disponíveis que uma recessão mundial anuncia, algumas competências podem vir a tornar-se mais importantes nas conversas privadas com as nossas emoções e com as emoções dos que nos estão próximos. Lado a lado com a o exercício de cidadania política responsável, outras metas emergem. Aprender a viver com maior tranquilidade em um mundo de escolhas cada vez mais condicionadas, abrandando no caminho, é certamente uma meta a considerar, na terapia e para além dela.