Como psicólogo, quase três semanas em isolamento enquanto vejo clientes online, tenho vindo a refletir sobre as várias mudanças de comportamento que temos vindo a fazer durante esta crise. Tanto em terapia quanto na minha vida pessoal, um tópico que parece emergir com alguma frequência centra-se nas preocupações atuais acerca de embalagens recebidas em casa. Qual é a forma certa de proceder com embalagens de modo a minimizar os riscos? Será que as fontes científicas credíveis são suficientes para nos apontar o caminho para as boas práticas? Devemos olhar para as embalagens como um assunto em si mesmo ou como um conjunto maior de negociações acerca de regras de casa que estamos presentemente a atravessar? E o que tem a psicologia a dizer sobre a natureza do conflito que emerge desta negociação?
Covid-19: psicológico ou real?
Talvez a questão principal parta de um falso pressuposto: que assumir a Covid-19 como uma crise real implica pensá-la como o contrário de uma crise ‘psicológica’; como tal, algo que não necessita de pensamento acerca dos aspetos psicológicos envolvidos. Esta perspetiva radica de uma noção simplificada da psicologia (uma visão ´popular’ da psicologia) como o estudo do que se passa dentro da “mente” de cada um, olhando predominantemente para um/a individuo de cada vez. Na prática, existimos tanto dentro das nossas consciências individuais como fora delas, por exemplo, nas relações que estabelecemos com os outros significativos (parceiro/a, amigos, família, etc.). Qualquer crise, seja ou não a crise provocada pela Covid-19, não aparece do ‘acaso’. Um evento real como a Covid-19 encontra um lugar na pessoa que já éramos antes da crise e na forma como já tendíamos a reagir às situações. Encontra também um lugar nas relações estabelecidas com as pessoas próximas de nós e nas dinâmicas que as caracterizam.
Ana e Paulo: Covid-19, embalagens, risco e comportamentos de segurança
De forma a ilustrar o meu argumento, começo com uma história com dois protagonistas, Ana e Paulo. Trata-se de uma alegoria, um caso ficcional juntando elementos de várias pessoas que observo e com que trabalho nesta altura.
Ana e Paulo são um casal, casados há vários anos. Têm um filho de cinco anos chamado Ricardo. Tal como acontece com frequência com casais, e tal como lembra Esthel Perel (uma referência na área da terapia de casais) o que atrai os membros de um casal no início de uma relação, com frequência, é precisamente o que se torna um problema na relação, anos mais tarde. No duo representado por Ana e Paulo, Ana é a pessoa mais avessa ao risco e amante de tudo o que envolve estabilidade, rotina e segurança. O Paulo, por sua vez, é a pessoa mais inclinada para comportamentos de descoberta, exploração, fuga à rotina e aceitação de um elemento de risco, quando necessário. Estes papéis que ambos assumem na relação foram formados mais ou menos no início da relação. Como qualquer ‘papel’ dentro de um casal, transportam elementos da história individual e familiar de cada um.
A Ana provem de um lar onde o mundo externo (as pessoas fora da família imediata) era descrito como instável e perigoso. Ser adulto, na família da Ana, é controlar riscos desnecessários. O Paulo provem de um lar onde as atitudes em relação ao risco eram uma fonte de luta no casal parental. O Paulo foi criado por um pai avesso ao risco (semelhante aos pais da Ana, em muitos aspetos) e uma mãe mais orientada para a exploração e a descoberta. Cresceu observando a luta da sua mãe contra o tipo de expectativas, papéis sociais e rotinas domésticas tradicionalmente pedidos às mulheres. Foi criado por uma mãe que tentou viver a vida com um maior sentido de aventura, mais livre da repetição e da rotina, do que muitas mulheres da sua geração. Após alguma revolta adolescente, o Paulo veio a identificar-se gradualmente com o lado maternal de maior fuga à rotina, procura da exploração e aceitação do improviso na vida de todos os dias. Quando encontrou a Ana, percebendo o seu gosto por rotina e segurança, sentiu ter encontrado alguém que complementa o seu lado mais aventureiro. A Ana, por sua vez, viu no Paulo alguém que desafia a sua tendência para o conforto e a estabilidade. Também ela sentiu no Paulo a hipótese de um complemento.
A realidade chama: há uma embalagem à porta de casa
Quando uma dinâmica relacional é pouco flexível, são várias as situações que a podem tornar visível. Imaginemos que em tempos de Covid-19, uma embalagem é deixada à porta da casa da Ana e do Paulo. Esta situação convoca ambos a responderem da forma mais habitual no casal, no que toca à gestão de risco. A Ana toma a iniciativa. Sente que todas as precauções possíveis necessitam de ser tomadas. Acredita que a embalagem deve ser aberta fora do espaço da casa e que a caixa à volta da mesma não deve, de forma alguma, penetrar o espaço da casa. As mãos de todos devem ser imediatamente lavadas após tocar na embalagem e a caixa em volta deve ser colocada no lixo, mediante o uso de luvas. Todo o processo deve ser seguido por uma segunda lavagem de mãos.
Vendo a Ana a impor toda a série de procedimentos para lidar com a embalagem, o Paulo não consegue evitar o ressentimento. O Paulo sente o comportamento da Ana como exemplo de algo maior, uma busca de segurança, com frequência, sentida como exagerada. É também esta busca meticulosa de segurança e estabilidade, segundo o Paulo, que tem vindo a apagar a ‘chama’ inicial da relação, condenando cada dia à rotina e à semelhança com o dia anterior. Com o Ricardo mais tempo em casa, ambos sentem a necessidade de aparentar normalidade e não dar voz a sentimentos difíceis. À medida que esta dinâmica se repete, ao longo da crise e confinamento, o ressentimento vai crescendo. A embalagem deixada à porta de casa não é só um sinónimo da crise Covid-19. É também sinónimo de um desequilíbrio na relação, já sentido antes da Covid-19.
Covid-19 e psicologia: tempo para ‘time-out’, pensar e comunicar
A história da Ana e do Paulo, entre outros aspetos, existe para lembrar que nenhuma crise é completamente externa. As circunstâncias que nos cercam, por mais ‘externas’ que sejam, encontram sempre um lugar nas nossas histórias e nas histórias dos que nos rodeiam. A forma como lidamos com elementos como a crise, o risco, a instabilidade ou a insegurança têm as suas raízes nas nossas histórias familiares e individuais, muito antes de nos constituirmos como casais.
Um dado importante a lembrar nos tempos que vivemos é que as circunstâncias que estamos a passar não têm grandes precedentes, pelo menos na nossa era. Também por isso é perfeitamente legítimo não fingir que se têm todas as respostas, mas permitir algum “time-out” para pensar o que nos deixa confortáveis nos riscos envolvidos em lidar com a Covid-19, e como negociamos isso com outros em volta. Igualmente importante é continuar a abrir espaços fora das rotinas para abrir uma conversa franca e honesta sobre como cada um de nós se está a sentir face a esta crise, em particular com as pessoas com que partilhamos o espaço da casa. Esta conversa pode ou não abranger a forma como a pessoa aprendeu a viver o ‘risco’ e os ‘comportamentos de risco’, nas suas histórias pessoal e familiar. Como qualquer partilha íntima em tempos difíceis haverá sempre um risco maior: não falar, até que a crise externa dite o silêncio, acabando em um lugar relacional que é tudo menos seguro.